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sábado, novembro 19, 2005

TORTURAS MILITARES !! EXCESSÃO OU REGRA???


Oi!! Estou postando um pouco atrasada, uma crônica sobre cenas que também me horrorizaram no domingo à noite, quando vi o prazer da violência estampada na face daqueles que nós contribuimos para serem pagos, para a segurança e a defesa do país.Como confiar em militares que tratam os próprios pares com torturas e maldade... Não consigo mais entender o mundo e os seres irmãos....triste....

Tortura e náusea

Mariluce Moura
Novembro de 2005


Olho horrorizada, logo nauseada, percorrida por asco incontrolável, as imagens exibidas na telinha: o que vejo é pura crueldade, barbaridade atroz, abjeta selvageria. Um pequeno grupo de homens jovens, com farda militar, aplica furiosamente choques elétricos no corpo de outro homem jovem que, deitado no chão, se debate, encosta depois um prosaico ferro de passar roupa em sua orelha, atira-lhe seguidos baldes de água ao rosto, como para afogá-lo.

Sou lançada sem possibilidade de resistir, ao fim dos anos 60, aos 70 do século passado.
São todas, ante meu olhar, inequívocas cenas de tortura, a evocar outras aterrorizantes cenas de tortura que assombraram parte da minha geração, cenas que por vezes, de olhos vendados, não se viu e, no entanto, foram sentidas em toda a intensidade no corpo nu e no desespero da alma.

Cenas que, outras vezes, de olhos bem abertos, imaginou-se passo a passo enquanto se ouvia relatos a posteriori de tantos companheiros de jornada ou perscrutava-se o silêncio insondável, invencível, definitivo – irreversível – imposto pela tortura ao mais próximo dos homens, tão próximo que se tornara um outro único, verdadeiramente singular, destacado de todos os demais outros do mundo. Ou ainda cenas que, de olhos fechados pelo sono, divisou-se em pesadelos por noites sem fim, anos a fio.

Nos dias seguintes ao domingo, 13 de novembro, em que o Fantástico mostrou ao país inteiro aquelas terríveis cenas de tortura dentro de um quartel do Exército brasileiro em Curitiba -Paraná, as reações oficiais e as explicações formais multiplicaram-se: primeiro, ponderou-se que o vídeo fora editado pela TV, o que enfatizara nele uma carga de violência que originalmente não possuía.

Depois, as autoridades do Exército e os superiores diretos dos militares envolvidos no episódio informaram que eles já haviam sido punidos e seriam julgados por um Inquérito Policial Militar, um dos famosos IPMs que a essa altura quase julgávamos extintos da vida nacional.

Por fim, os próprios envolvidos trataram de explicar, para minimizar as cenas exibidas, que tudo aquilo era brincadeira, alguma coisa como um trote usual entre veteranos e calouros de uma instituição militar.
Para além de um certo cinismo que atravessa parte dessas reações, há algo de particularmente chocante na alegação de que eram meras brincadeiras cenas de tão violenta agressão ao outro – a seu território humano, digamos assim, ao lugar primeiro de seu existir. E exatamente esse caráter da fala dos militares vistos no vídeo faz retornar uma indagação já tantas vezes lançada neste país sobre o verdadeiro vínculo entre a prática oficiosa e generalizada da tortura no presente, que se difunde por delegacias, prisões e outras instalações do aparelho repressivo do Estado, e uma prática de tortura que foi quase política oficial do Estado brasileiro nos anos da ditadura militar.

Forçosamente a memória dos gritos e de tantos dolorosos silêncios posteriores resultantes das mortes por tortura em quartéis e outras edificações financiadas pelas Obans e horrores similares dos anos da ditadura desliza para as delegacias, prisões, e outras instalações do sistema atual de segurança, em que – sabemos todos, ainda que façamos força para esquecer esse incômodo saber – faz-se uso sistemático da tortura como se ela fosse efetivamente a via normal, o caminho absolutamente óbvio e natural para obter de quem está submetido à violência (nem sempre) legal do Estado aquilo que dele se quer ouvir.

Mais: por vezes, sequer se trata de arrancar confissões, tortura-se tão somente porque essa é a praxe, essa é a linguagem desses ambientes. Tortura-se porque os chamados agentes da lei acham que podem fazer isso. Torturar tornou-se algo inteiramente banal.
Porque essa prática, como disse Cecília Coimbra ainda no texto de uma palestra proferida em 2000, não resulta de omissão, conivência ou tolerância das autoridades para com essas questões, mas antes se trata de “uma política silenciosa, não falada, que aceita e mesmo estimula esses perversos procedimentos”.

Cecília, psicóloga, professora da Universidade Federal Fluminense (UFF) e, por vários anos, presidente do Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro, examinou o assunto em numerosos trabalhos acadêmicos que se tornaram parte essencial de sua incansável militância pelo respeito aos direitos humanos no Brasil.

Na mesma palestra já citada, Tortura no Brasil como Herança Cultural dos Períodos Autoritários, apresentada no Seminário Nacional sobre a Eficácia da Lei da Tortura, em 30 de novembro de 2000, em Brasília, ela observava que as práticas de tortura nos anos 90 passaram a ser percebidas “por grandes segmentos de nossa população como questões que não lhes dizem respeito e, até certo ponto, como aspectos necessários para conter a violência dos ‘perigosos’. Desde que aplicadas aos ‘diferentes’, ‘marginais’ de todos os tipos, tais práticas são em realidade aceitas, embora não defendidas publicamente”.
Esse autoritarismo disseminado na sociedade brasileira, porque é disso que se trata, de uma certa maneira contribui para a opacidade dos esforços incessantes dos grupos que batalham pela completa desmontagem das estruturas repressivas montadas durante a ditadura militar. Veja-se, a propósito, a questão da queima de documentos importantes relativos à repressão política daqueles anos em instalações da Aeronáutica, em Salvador, Bahia, que voltou à cena no mesmo Fantástico, uma semana antes da exibição das cenas de tortura no quartel de Curitiba.

O programa da Tv Globo divulgou que um novo laudo produzido pela Polícia Civil de Brasília confirmava que os documentos foram efetivamente queimados na Base Aérea de Salvador, contrariando o laudo anterior da Polícia Federal segundo o qual os documentos haviam sido queimados em outro lugar e despejados na área da Aeronáutica, o que a eximia de responsabilidade no caso.

“Batalhamos anos a fio pela abertura dos arquivos da Polícia Federal em Salvador, até conseguirmos, no final do governo de Fernando Henrique Cardoso, colocar parte dos documentos sob nosso controle”, conta Ana Guedes, presidente do Grupo Tortura Nunca Mais da Bahia. “Quando já tínhamos obtido, portanto, algumas vitórias significativas, no final do ano passado fomos procurados pelo jornalista Eduardo Faustino que nos contou do arquivo queimado que seria apresentado no Fantástico. Visitamos o local e não era preciso ser perito para constatar que os documentos haviam sido queimados ali mesmo. Por isso, o laudo da Polícia Federal foi como um balde de água fria”, continua Ana Guedes.

Agora, fortalecidos pelo novo laudo, o Grupo Tortura Nunca Mais, junto com a seção baiana da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-BA), a Associação Baiana de Imprensa (ABI), a Associação dos Arquivistas da Bahia e deputados estaduais tradicionalmente ligados à luta pelos direitos humanos, como Alice Portugal, Emiliano José e Javier Alfaya, estão pedindo a reabertura do processo para apurar responsabilidades na queima do arquivo.
Trata-se, como diz Ana Guedes, de mais um passo numa luta de muitas frentes contra a tortura e sua absoluta banalização. Na verdade, essa luta envolve até reafirmar continuamente o conceito de tortura, para evitar as armadilhas da desqualificação técnica ou jurídica, quando as injúrias a que se submete alguém não têm por propósito arrancar-lhe uma confissão. Tortura é, segundo o artigo 1º da Convenção da ONU “Sobre a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes”, de 10 de dezembro de 1984.
“Qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de terceira pessoa, informações ou confissões; de castigá-la por ato que ela ou uma terceira pessoa tenha cometido ou seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza; quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por um funcionário público ou outra pessoa no exercício de funções públicas, por sua instigação, ou com seu consentimento ou aquiescência”.
A tortura, na verdade, é prática que percorre toda a história da humanidade, em todos os quadrantes do planeta, e em todos os tipos de civilização, como descrevem um sem número de obras, inclusive o extremamente incômodo livro de Glauco Mattoso – pela irreverência com que tratou tema tão trágico –, O que é Tortura, da Coleção Primeiros Passos, da Brasiliense.

É uma prática que ganha status especial durante os anos da Inquisição da igreja Católica e assim permanece até começar a ser publicamente execrada no século XVIII. No final desse século, “a tortura será denunciada como resto das barbáries de uma outra época; marca de uma selvageria denunciada como ‘gótica’”, diz Michel Foucault em seu famoso Vigiar e Punir (página35, da 23ª edição publicada pela Vozes).
Na sociedade brasileira, fundada sobre um regime escravista que ocupou mais de três de seus cinco séculos de existência, a tortura é prática profundamente entranhada. E de novo citando a palestra de Cecília Coimbra, “a relação entre pobreza e criminalidade, disseminadas por todo o século XX, hoje atualiza-se e está presente nas falas daqueles que defendem a militarização da segurança pública, temerosos pelas ondas de violência que os meios de comunicação alardeiam. Está presente quando acreditamos que é uma realidade vivermos em uma ‘guerra civil’ e que é natural que suspeitos – ou que pobres – sejam torturados e até desapareçam”.
Será longa, certamente muito longa a luta contra esse olhar naturalizado para a tortura, isso que busca, "à custa do sofrimento corporal insuportável, introduzir uma cunha que leve à cisão entre o corpo e a mente”, como disse o psicanalista Hélio Pellegrino, em artigo citado no Brasil: Nunca Mais, organizado pelo então arcebispo de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns.

Na tortura, Pellegrino acrescentou, “o problema da alienação alcança o seu ponto crucial". É fundamental, portanto, manter o asco, a náusea, contra essas imagens aterrorizantes da invasão bárbara ao território sagrado do outro que alguns ainda têm a desfaçatez de justificar como brincadeira. Na verdade, é preciso combater todos os Abu Graibs, onde quer que eles se apresentem, mesmo num tempo em que a violência se ergue como uma contra-linguagem de um mundo que a todos desorienta.

Mariluce Moura é jornalista e autora do romance "A revolta das vísceras", relativo ao período da ditadura militar.
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